Uma Ferramenta Poderosa, Mas Não Uma Panaceia
O credenciamento, revitalizado pela Lei nº 14.133/2021 e detalhado pelo Decreto nº 11.878/2024, emerge como um instrumento de contratação pública com notável potencial estratégico para o setor da saúde. Diferentemente da licitação tradicional, que busca selecionar um único ou limitado número de vencedores, o credenciamento permite à Administração Pública contratar simultaneamente diversos fornecedores que atendam aos requisitos estabelecidos, sem exclusão de nenhum.
Esta característica inclusiva e flexível alinha-se perfeitamente com a necessidade de capilaridade, agilidade e diversificação da rede assistencial do Sistema Único de Saúde (SUS), que enfrenta o desafio de garantir acesso universal e integral à saúde em um país de dimensões continentais.
O Marco Legal e Suas Inovações
A Lei nº 14.133/2021 define o credenciamento como um procedimento auxiliar (Art. 78, I) que, em certas hipóteses, configura uma modalidade de contratação direta por inexigibilidade de licitação (Art. 74, IV). O Art. 79 detalha três hipóteses de cabimento:
- Paralela e Não Excludente: Permite contratar vários fornecedores para a mesma prestação de serviço, crucial para a contratação de clínicas, hospitais e laboratórios que ofereçam o mesmo tipo de exame, consulta ou procedimento.
- Com Seleção a Critério de Terceiros: A escolha do prestador é feita diretamente pelo beneficiário do serviço, traduzindo-se na liberdade do paciente ou seu médico em escolher um profissional ou instituição dentro da rede credenciada.
- Em Mercados Fluidos: Aplicável a situações onde a constante flutuação de preços e condições de mercado torna inviável a licitação competitiva.
O Decreto nº 11.878/2024 trouxe avanços significativos ao operacionalizar o credenciamento no âmbito federal, instituindo a obrigatoriedade de processar o credenciamento via Compras.gov.br e determinando a abertura permanente do edital, permitindo que novos interessados se cadastrem a qualquer tempo.
Panorama Quantitativo: Uma Tendência de Crescimento
Dados extraídos do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP) revelam uma tendência expressiva de crescimento na utilização do credenciamento. Em 2023, foram registrados 1.143 editais de credenciamento, número que saltou para 2.100 em 2024 – quase o dobro do ano anterior. Para 2025, os dados parciais (até maio) já indicavam 670 editais publicados.
Na área da saúde especificamente, a estimativa aponta para 585 editais em 2023, subindo para 758 em 2024. Este crescimento acentuado coincide temporalmente com a entrada em vigor plena da Lei nº 14.133/2021 e a publicação do Decreto nº 11.878/2024, sugerindo uma forte correlação entre o novo marco normativo e a maior adoção do credenciamento.
Vantagens Estratégicas para a Saúde Pública
O credenciamento oferece múltiplos benefícios ao setor da saúde:
- Ampliação da Capacidade de Resposta: Permite expandir rapidamente a rede de prestadores de serviços e fornecedores de bens, essencial para reduzir filas de espera e lidar com urgências e surtos epidêmicos.
- Desburocratização e Celeridade: Reduz a complexidade e o tempo dos processos de contratação, vital em um setor onde a demora pode significar agravamento de condições de saúde ou perda de vidas.
- Aumento da Concorrência e Inclusão: A abertura permanente do edital funciona como um convite contínuo ao mercado, favorecendo a entrada de pequenas clínicas especializadas, laboratórios locais e profissionais autônomos, democratizando o acesso às contratações públicas.
- Flexibilidade e Adaptabilidade: Permite ajustar a rede de prestadores conforme a demanda flutua ou novas especialidades se tornam necessárias, sem a rigidez de aditivos contratuais complexos.
A Outra Face da Moeda: Desafios e Riscos
Se por um lado o credenciamento oferece vantagens promissoras, por outro, sua implementação não está isenta de desafios significativos:
- Controle e Fiscalização: Gerenciar múltiplos contratos simultâneos exige mecanismos de acompanhamento robustos para evitar fraudes, conluios e direcionamento indevido de demanda.
- Qualidade e Padronização: Como garantir um padrão mínimo e consistente de qualidade assistencial com múltiplos prestadores? A Administração precisa ir além da simples habilitação, definindo indicadores de desempenho claros.
- Subjetividade e Iniquidades: A liberdade de escolha do usuário pode ser influenciada por assimetrias de informação, marketing agressivo ou relações pessoais, potencialmente gerando concentração de demanda em poucos credenciados.
- Impacto Financeiro: Como o pagamento frequentemente ocorre por produção, o desembolso total pode variar significativamente, tornando a previsão orçamentária mais complexa.
Credenciamento e Judicialização: Uma Relação Ambivalente
O credenciamento pode oferecer uma alternativa mais estruturada e célere para cumprir ordens judiciais, evitando contratações emergenciais apressadas e a preços desvantajosos. Contudo, essa relação carrega tensões intrínsecas entre atender determinações judiciais individuais e manter os princípios de universalidade, integralidade e equidade do SUS.
O uso do credenciamento para atender demandas judiciais por tecnologias não incorporadas pelo SUS também levanta questionamentos sobre avaliação de custo-efetividade e segurança, potencialmente fragilizando a política de incorporação tecnológica baseada em evidências.
Rumo à Estratégia: Perspectivas Essenciais
Para que o credenciamento transcenda sua função de mero procedimento administrativo e se consolide como ferramenta estratégica, alguns caminhos são cruciais:
- Capacitação Contínua: Gestores bem preparados podem identificar quando o credenciamento é a solução mais adequada e implementar mecanismos de controle eficazes.
- Tecnologia e Análise de Dados: A gestão eficiente de uma rede ampla de credenciados depende de sistemas de informação integrados que permitam monitoramento de desempenho e transparência.
- Regulamentação Local: Adaptar a aplicação do credenciamento às particularidades epidemiológicas e capacidade instalada de cada território.
- Planejamento Estratégico: O credenciamento não dispensa a fase preparatória; a definição clara do objeto, estimativa realista da demanda e critérios de qualidade mensuráveis são essenciais.
Conclusão: Uma Ferramenta que Exige Manejo Cuidadoso
O credenciamento firma-se como um instrumento com notável potencial estratégico para o setor da saúde, mas seu sucesso não é automático nem garantido apenas pela previsão legal. As vantagens da celeridade, inclusão e flexibilidade coexistem com desafios significativos de controle, qualidade e gestão.
A transformação do credenciamento em uma alavanca para a eficiência e a equidade no SUS depende fundamentalmente da capacidade da Administração Pública em implementar boas práticas: investir em capacitação, tecnologia e dados; adequar a regulamentação; e jamais negligenciar o planejamento rigoroso e o controle efetivo.
Somente assim, o credenciamento poderá cumprir seu papel de fortalecer o acesso universal e integral à saúde, garantindo que a “porta aberta” pela nova legislação conduza a um sistema mais robusto e resiliente, e não a um labirinto de ineficiências.
Este é um resumo do artigo completo “Credenciamento na Saúde Pública: Uma Análise Estratégica à Luz da Nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021)”, que apresenta uma análise aprofundada do tema, incluindo dados quantitativos, marcos legais, vantagens, desafios e perspectivas futuras.
LINK do artigo: https://silvanerialmeida.com.br/wp-content/uploads/2025/06/Credenciamento-na-Saude-Publica.pdf